1º de junho de 2022
1º de junho de 2022

O ônus da prova em casos ambientais segundo a legislação brasileira

Por Filipe Carvalho, Associado Sênior
Por Filipe Carvalho, Associado Sênior

É uma regra no direito brasileiro que, em geral, quem alega deve provar a alegação. De acordo com o artigo 373 do Código de Processo Civil Brasileiro[1], o ônus da prova cabe ao demandante, para provar os fatos constitutivos de sua causa (inciso I) e ao demandado, para provar fatos que prejudiquem, modifiquem ou extingam o direito do demandante (inciso II).

Portanto, toda vez que a parte entrar com um processo, ela deve indicar[2] e reunir[3] em sua declaração de reivindicação toda a documentação que comprove suas alegações.

No entanto, há situações em que essa regra do ônus da prova não pode ser aplicada, citando como exemplo, quando o reclamante não tem as provas para cumprir esse dever ou porque é mais fácil obter prova do fato contrário.

Nesse sentido, o Código de Processo Brasileiro[4] autoriza o juiz a atribuir o ônus da prova de forma diversa, desde que o faça por decisão fundamentada, devendo o juiz também dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.

Vale mencionar que o Código de Processo Civil brasileiro (Lei Federal nº 13.105/2015) também concede às partes o direito de definir, antes ou durante o processo, a distribuição do ônus da prova[5]. Essa regra não se aplica, entretanto, se impactar o direito inalienável da parte (aquele que não pode ser dado ou retirado) ou quando dificultar excessivamente o exercício desse direito.

Em 2018, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), órgão colegiado do Poder Judiciário brasileiro, editou a Súmula n. 618 que tem a seguinte redação: "A inversão do ônus da prova aplica-se ao processo de degradação ambiental".

A inversão do ônus da prova em questões ambientais pode ser justificada pela aplicação do princípio da precaução, no princípio 15 da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (UNCED 1992), que afirma que: "Afim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a falta de certeza científica total não deve ser usada como motivo para adiar medidas eficazes e econômicas para evitar a degradação ambiental[6]."

Em palavras simples, se houver qualquer suspeita de que uma atividade possa causar danos ambientais, o meio ambiente deve ter o benefício da dúvida.

Não é de se estranhar que o STJ, ao julgar um caso ambiental[7], tenha firmado o entendimento de que "o princípio da precaução (...) pressupõe a inversão do ônus da prova, transferindo para a concessionária o ônus de provar que sua conduta não ensejou riscos ao meio ambiente (...)".

De fato, o mesmo entendimento foi novamente apresentado pelo STJ[8]. Veja: "o princípio da precaução pressupõe a inversão do ônus da prova, cabendo a quem supostamente causou o dano ambiental provar que não o causou ou que a substância liberada no meio ambiente não é potencialmente danosa".

Conclui-se, portanto, que a existência dessas regras, amparadas por sólida jurisprudência, têm como foco evitar que as atividades das grandes empresas poluidoras fiquem impunes, trazendo para a parte (que muitas vezes é desfavorecida) uma efetiva paridade de armas e um meio equilibrado de fundamentar as alegações, seja por si mesmas, seja pela utilização da inversão do ônus da prova.

Referências
[1] Art. 373. O ônus da prova incumbe:
I - ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;
II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
[2] Art. 319. A reclamação deverá informar:
VI - as provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados;
[3] Art. 320. A reclamação produzirá os documentos indispensáveis à propositura da ação.
[4] Art. 373, §1º: Nos casos previstos em lei, ou tendo em vista as peculiaridades da ação relativas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput, ou, ainda, à maior facilidade de obtenção de prova em contrário, o juiz poderá atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça em decisão fundamentada, devendo, nesse caso, ser dada à parte a oportunidade de realizar o encargo que lhe foi atribuído.
[5] Art. 373, § 3º: A atribuição diversa do ônus da prova também poderá ocorrer por acordo das partes, salvo se:
I - importe em direito inalienável da parte;
II - torne excessivamente difícil o exercício do direito por uma das partes.
Art. 373, § 4º: 4º O acordo a que se refere o § 3º poderá ser celebrado antes ou durante o processo.
[6] Vale ressaltar que o princípio da precaução tem suas origens na "Carta Mundial da Natureza", de 1982, cujo princípio n. 11, "b", estabeleceu a necessidade de os Estados controlarem as atividades potencialmente nocivas ao meio ambiente, ainda que seus efeitos não fossem totalmente conhecidos.
[7] STJ, AgInt no Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1311669 - SC, Relator Desembargador Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 03 de dezembro de 2018.
[8] STJ, REsp 1.060.753/SP, Relatora Desembargadora Eliana Calmon, julgado em 01 de dezembro de 2009.

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